domingo, 13 de julho de 2008

(sem título)

O sapato vermelho não lhe parecia mais tão atraente naquela noite, não sabia se ele na verdade nunca fora ou se era ela que já não agüentava mais olhá-lo. Piscou os olhos, levantou-se e pôs-se a passar lápis preto nos olhos já vermelhos da água que se derramava por eles.
- Por que você não pára de botar esse negócio pelo menos enquanto a gente conversa?
- Conversar o quê? Me parece que você já disse tudo o que queria. Agora me deixa me maquiar em paz.
- Então, é assim que vai terminar?
- Eu é que deveria estar perguntando isso a você! Por mim, você estaria agora na primeira fila me esperando e me oferecendo seus olhos verdes e, mais tarde, suas mãos, eu e você. Não me olhe assim: já me vesti toda, botei maquiagem, não posso borrar de novo. Porra de lápis que não funciona! Pára que eu preciso secar meus olhos! Vai, sai. Mas saiba que se sair por aquela porta agora, é pra não voltar nunca mais.
- Não é assim que funciona, Ana. Você está muito nervosa! Por que você não larga esse disfarce, essas pinturas todas, e me diz o que você tá pensando, sem ficar só me mandando ir embora logo?! Me diga o que você está pensando... Uma coisa como o que a gente tem não pode terminar assim, mal entendida...
- E que coisa é essa que eu não vejo? Eu não sou idiota: eu já passei por muita coisa e eu sei que o que fica nessa vida é só o que a gente pode ver. É pra isso que a gente tem olho. Pra ver o que existe e ter aquilo pra sempre, o que você vê é seu, ninguém tira. Assim como o que você toca. E eu não consigo te tocar, nunca consegui, eu é que sempre fui tocada por você. E me acostumei a isso, nunca precisei mudar essa situação. Você foi o único homem pra quem me deixei ser assim. E o único que eu amei. Ironicamente, foi justamente o único que nunca me amou.
- Isso não é verdade, Ana. Eu te amei desde a primeira vez que eu te vi lá naquele bar, com aquela peruca loira que eu roubei do teatro pra que eu só pudesse te ter daquele jeito, com aquele rosto. Eu te amei desde aquele dia. E te tirei de lá, quis te guardar só pra mim e eu já tinha dito que ia te dar tudo. Mas você correu de mim, lembra? Preferia a sua vida, os seus movimentos, o seu mundo de perucas, brincos, sapatos, homens...
- Cala a boca! O único homem que eu tive e tenho na minha vida é você! Você sabe disso, não queira me culpar por seu ciúme doentio, por sua insegurança de menino mimado que dormia com a mãe até os doze anos! Você nunca me amou: eu era mais um brinquedo como aqueles que você ganhava do seu pai quando ele voltava de viagem e que você colocava na estante assim que ganhava outro. E é exatamente isso que você quer fazer agora: você não tem coragem de me jogar no lixo, prefere me colocar na estante pra me ter quando quiser. Mas eu não: eu não sou dessas. Eu respiro, meu coração pulsa, acelera, se acalma. Eu nunca quis atenção de uma criança: o que eu mereço é amor de homem. Isso aqui é a minha vida, mas você sou eu. Depois que eu te conheci, até a dança ficou diferente, novos passos. Eu sei que eu sempre fui a estrela da noite, a mais bonita, a melhor em tudo e pra todos, menos pra você. Você me desarmou, roubou meus sapatos, minhas meias, jogou uma pedra no vidro que eu segurei a vida inteira. E pra você, eu era apenas a dançarina mais bonita de toda cidade e que por isso ia ficar linda decorando seu quarto. E não venha me dizer que eu fico ainda mais bonita chorando porque eu vou chorar ainda mais e eu não posso chegar lá fora assim. Não. Já disse, não quero sua piedade nem sua vergonha: se é assim que você se sente, vá embora. Sai.
- Ana, dez minutos, palco principal. Está pronta?
- Sim, quase. Está vendo? Sai, teu tempo acabou.
- Ana... se você se sentia assim porque não foi embora comigo e deixou tudo isso pra trás? E saiba que pra mim você não era só mais um carrinho da minha coleção, não. E era justamente por isso que eu te queria só pra mim.
- Ah, então como você não conseguiu me ter como queria, você simplesmente decidiu me deixar por um tempo, pra voltar quando estivesse enfiado num casamento com alguma mulher que fosse exclusiva e que pertencesse ao seu mundinho? Eu não vou amar um idiota mesmo que já ame! Prefiro amar todos esses homens que me amam sem amor nenhum do que amar alguém que pensa que amar permite a você colocar o outro numa fôrma de gelo!
- Você não entende, a Gabriela tá grávida de um filho meu, eu não posso continuar te vendo! Pronto, falei. Eu não queria ter que te contar isso, mas você me obrigou!
- Filho da puta! Você ia me deixar e nem ia me dizer o real motivo! Tá me deixando só porque vai casar, porque vai ser pai e constituir uma família linda e feliz, mas não percebe que eu é que te amo e eu sou a única que pode te fazer um homem de verdade! Sai da minha frente. Nojento! Falso!
- E você queria o quê? Que eu me casasse com você e com essa vida que você leva ? O que eu ia dizer à minha família, aos meus amigos quando perguntassem quem era a minha mulher?
- Você deveria dizer exatamente isso: essa é a minha mulher. Minha e de mais ninguém, sem importar o fato de que esteja dançando todos os fins de semana pra outros tantos homens. Mas, agora o máximo que você pode dizer é que é um covarde, um canalha! E o que é que tem a minha vida? Pois saiba que eu prefiro mil vezes levar a vida que eu levo do que qualquer outra, inclusive a sua... rico, bonito e covarde! Fraco. Teve que sair do castelo e vim até aqui, o submundo, pra encontrar amor de verdade porque no seu mundinho as mulheres só querem o seu nome e seu dinheiro!
- E você não quer dinheiro não? Você fala como se prostituta não vivesse do dinheiro de homens como eu...
- Tira a mão de mim agora! Sai daqui! Sai!
- Calma, Ana, calma, você tá me machucando! Eu estou tentando conversar, Ana! Acredite em mim, eu gosto de você, mas ponha-se no meu lugar. Eu não tenho escolha, não posso largar minha vida toda pra ficar com você! Vamos nos resolver como duas pessoas civilizadas... você tá louca? Você acha que pode cuspir assim na minha cara? Quem você tá pensando que é? Eu não vou mais falar: gente como você não entende a linguagem das palavras. Eu tentei.
- Você é muito pior: não entende a linguagem do amor. Não vai aprender porque já tá sujo demais da graxa desse mundo imundo. Você é um imundo. Você é uma fruta que já tá com o miolo podre. Eu tenho vergonha de te amar porque isso me contamina também. Mas eu já comecei a te botar pra fora e vou te cuspir até o último pedaço. Aliás, vou cuspir só o que é parte minha que gosta de você porque de você não tem nada em mim pelo simples fato de que você nada me deu. Nesse momento, eu só sinto vergonha de te amar.

Ele, então, limpou os sapatos perfeitamente engraxados no carpete e bateu a porta como filho que sai da casa dos pais: pra nunca mais voltar.

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