domingo, 31 de agosto de 2008

Para Nathália, por um motivo ou outro, um menino ou outro

Mas eu gostava demais dele. O nariz, o cabelo em desalinho, os desenhos coloridos nas costas e aquele movimento de olhos que só ele fazia tinham me prometido a ele desde a primeira vez que eu o vi, naquela manhã de quarta-feira. Eu me lembro perfeitamente. Inclusive da promessa de ser dele dali até até. Eu era uma adolescente difícil, já tinha esse gênio de cavalo do cão, como diz minha mãe. Sempre estava de castigo, batia no meu irmão mais novo, vivia gazeando aula pelo(s) pátio(s) da(s) escola(s), chutando pedrinhas pelo meio do caminho e comendo alguma fruta que minha mãe me mandava pro lanche. Era tinhosa, sangue ruim mesmo. Carne de pescoço. Numa dessas andanças, tinha ele, o menino. O nome dele? Não é que eu não soubesse: é que eu achava que chamar pelo nome deixava as coisas sérias demais, reais demais e ele pra mim era mais uma fuga da imaginação, um descanso na minha loucura. E assim vem sendo desde então. Nunca chamei ele pelo nome: o que tem escrito na carteira de identidade dele é meu segredo e eu não vou contar pra ninguém, nem pra você, pra quem conto tudo e já contei muito mais. Esse é o meu segredo e realmente não vem ao caso. Deixa eu te contar a história. Ele tinha somente 16 e já tinha uma tatuagem enorme nas costas largas e aquela cara que é capaz de deixar qualquer mulher de cabelo em pé e mãos atadas. Eu tinha 15, e como te disse antes, já tinha o sangue quente e o coração na goela. Apesar disso, não posso deixar de dizer que não tinha esses peitos lapidados com 200 ml de silicone, essas horas de academia nem esses cabelos cor de sangue, que parecem encaixar-se como uma luva a essa minha personalidade. Mas já tinha essas sardas no rosto e essa obstinação no olhar e ele (ah, ele) já tinha aquele pomo-de-adão lhe correndo pela garganta e um andar meio torto, pernas trocadas que deixavam ele ainda mais lindo. Eu sei, eu sei, estou enrolando demais. Mas me aguarde que eu chego na parte que você quer. Só espere. Não era como se eu me imaginasse com ele: acredite se quiser, eu não me via namorando com ele. Não conseguia nem pensar em ele conhecendo meus pais, indo almoçar na casa de vovó no domingo ou apontando pra mim e dizendo “essa é minha namorada”. Não.Não era isso que eu queria dele. Também não era como se eu só quisesse beijar a boca dele com todo o vigor da minha progesterona, meu estrógeno e mais não sei o que lá que eu aprendi em biologia ou como se eu apenas quisesse me valer de todo aquele corpo só pra tirar minha virgindade e me tornar definitivamente uma das minhas amigas mais velhas, inclusive você. Lembra desse meu complexo de virgem aos 15? É, isso é inesquecível, é verdade. Eu sei que você lembra. Bem, o fato é que não era nada isso.Era uma coisa minha e dele, minha por ele, na verdade, um sentimento que nem se atrevia a se olhar no espelho. Se você me perguntasse o que era, eu ia dizer sem titubear: coração disparado, vermelho no rosto, fogueira no estômago, o que é isso, meu deus? Paixão, ponto final. Eu era apaixonada por ele a ponto de esquecer os sapatos, de engolir caroço de melancia, de ir olhá-lo no futebol pelos combogós do banheiro da escola, de me perder toda quando ele aparecia. Perder meus pedaços e meu controle, que nada, nem ninguém (exceto ele, claro) conseguiam roubar. Tu acredita que eu sabia até onde ele morava?É, um amigo de um primo dele tinha me dito. Dito e feito. Pegava minha Caloi verde e rosa e desviava o caminho da padaria para passar na casa dele. O que eu não sabia é que esse não era um simples desvio de rota: eu já tinha sido desviada, perdido o mapa, estrada sem placa, sem qualquer sinalização. Nenhum sinal de perigo. Perigo, alerta vermelho, código preto, eu não sabia o que era nada disso. A única coisa que eu sabia da palavra perigo é que ela é em inglês é danger, dangerous. Só. Pra mim, tudo aquilo era inofensivo demais, até mesmo bobo demais. Sim, eu passava pela rua dele todos os dias entre as quatro e cinco da tarde e que mal isso poderia ter? Mal, mal mesmo realmente não havia. Mas havia umas mil duzentas e cinqüenta mil estrelas no meu olhar, uns cem pés de esperança sendo aguadas por vários regadores gigantes e mais uns trinta dentes que sempre surgiam no meu rosto de menina magricela quando eu o fazia. Eu ficava parada, só olhando pra ele. Só olhando e rindo e sentindo tudo parado, tudo, absolutamente tudo. Lá vinha ele.

Pronto.

Parou.

Eu era capaz de ouvir minha respiração, quase conseguia ouvir meu sangue fazendo algo parecido com a Maratona de Nova York dentro de mim. Era isso. Aliás, é isso. Vinte e cinco anos que tenho, trinta que vou ter daqui a 4 anos e meio e sei que nunca vou viver nada parecido. Porque era uma coisa pura mais do que água de fonte subterrânea, eu conseguia ver meus pés pela água no fundo como em mar de Fernando de Noronha, não havia egoísmo, raiva ou necessidade de atenção, não. Talvez o único sinal de egoísmo fosse eu jamais ter deixado ele saber. Sim, sim, até hoje. Eu nunca quis que ele soubesse porque o melhor do amor platônico é justamente o fato de ele ser platônico.A partir do momento em que ele é pronunciado, ele se materializa, independentemente da reciprocidade do outro. Mesmo que tudo corra bem, que a outra pessoa também te ame loucamente ou até mesmo sonhe com você todas as noites, não importa: deixa de ser amor platônico. E isso foi algo que mesmo com meu coração na goela, minhas crocodilagens, meu sutiã recheado de algodões na época e minha caloi todas as tardes na frente da casa dele, eu guardei em mim. Eu sei que essa história é estranha pra você, sei mesmo. Primeiro, você deve estar se perguntando: por que eu guardei isso por tanto tempo? E segundo, como eu pude me sentir assim por alguém alguma vez na vida, não é? Você me conhece. Você sabe que eu sou dura na queda, mas quando eu caio, já caio dura.Morte súbita, sem pausa pra catalepsia ou purgatório. E essa foi a única vez que eu caí. Justamente por ele a quem era capaz de enxergar de olho fechado, mas desviava a íris de olho aberto; ele que me tirava do sério, me fazia ser molenga, fofa (como dizem vocês quando alguém é doce na vida), justamente ele, junto de quem eu mantinha os joelhos fechados e calcinha exatamente como eu vesti sem nenhum impulso de fazer diferente. Justamente por ele a quem nunca sequer dirigi a palavra ou dei um aceno simpático. Justamente por ele a quem encontrei na rua semana passada. Como ele estava? Ele estava ele, that’s all.A minha paixão-loucura-criancice por ele ainda é a mesma, eu fui jogada no passado, deixei de ser eu e virei eu-fui, eu simplesmente não consegui mais andar. Como era de se esperar, eu não tive coragem de encará-lo, meus olhos fugiram depressa pros braços e mãos dele (você bem sabe da minha loucura por mãos, não é?). E lá estava exatamente o que eu menos esperava ver nele. Nunca uma coisa tão brilhante me fez ficar tão opaca, tão desbotada. Nunca. Como diante de tantas coisas onde eu pudesse descansar meu olhar, tanta beleza pra eu ver, tanta saudade pra matar a primeira coisa que eu consegui enxergar foi uma aliança? Uma aliança, minha filha. Eu e essa minha mania por detalhes. Sempre me disseram que se prender demais aos detalhes desvia a atenção do ponto central e é realmente verdade. O ponto central é que eu tinha perdido ele de vez, mesmo sem nunca ter tido. Sem nunca ter tido nem coragem de ter. E sem nunca mais ter tido nada parecido nem diferente, nada que significasse alguma coisa pra mim. Lembra quando eu disse que eu não via mais as placas de perigo nem sabia mais o que ele significava quando era mais nova?. Nunca mais achei, o achei, me achei, barco perdido, carregado e cheio. Também nunca achei que fosse virar uma cínica, com direito a carteira oficial do Clube das Sonsas e título de maior fingidora que essa cidade já viu. Eu me perdi, rota para a clausura, para a secura de caráter e para o coração duro, longe de mim mesma. Achei de me perder, perder os sentimentos e só achar exatamente o que quisesse, ou seja, o corpo de vários outros homens ao longo dos anos. E foi aí que me perdi de vez e agora me acho aqui te contando tudo isso e me achando a mais seca (ou a mais idiota) das criaturas. Quando o vi, percebi tudo: quis me achar. Me achar nos braços dele, na cama dele, nos olhos dele, na rua dele encostada na minha Caloi velha. Eu achava que nunca perdia. Disse bem: achava. Porque agora eu não acho mais é nada e se você contar pra alguém que me viu chorando, nunca mais eu te conto nada, ok?

2 comentários:

Nathália. disse...

Pra mim.
De coração, para coração.

te amo.
:*:*

Nathália. disse...

hoje é dia 12 de novembro e eu tô aqui, lendo de novo.