quarta-feira, 26 de março de 2008

- Tem uma coisa estranha no teu olho, parece uma folha, não sei direito.
- É uma flor. Já olhei no espelho.
- Deixa eu ver. É, é uma flor mesmo. Uma flor amarela que esconde o verde do teu olho...
- Não me olha assim porque eu fico constrangida, me sinto invadida, sei lá.
- Eu tou te invadindo agora?
- Tá sim. Todo olhar é uma forma de invasão.
- E essa invasão é boa ou ruim?
- É invasão consentida. Tou te deixando me invadir e você não vai poder ir muito longe porque você só entra até onde eu deixar.
- Como assim? Nunca vi invasão com cercas nem limites. Invasão é justamente quebra de fronteiras, derrubar as portas e sair olhando tudo.
- Mas essa tem fronteira e ela tá justamente na porta, logo na de entrada. A flor do meu olhar é venenosa. Se você tentar tocá-la, fica no meio do caminho, rendido. É minha barreira, meu escudo.
- É? Muitos já ficaram nessa flor?
- Ah, ela não sabe contar.
- Mas o resto do jardim sabe, especialmente o regador das plantas.
- Ah, o regador foi embora, pediu demissão há uns 6 meses...
- E até agora não apareceu outro?
- Não.
- Hm. E como ele fazia pra regar a flor sem ser atingido pelo veneno?
- Ah, não faço a menor idéia, mas posso dizer que foi ele quem fez a flor crescer e tomar quase o olho todo. Mas logo depois fez a flor ganhar veneno...
- Você sabia que quando a gente é mordido por uma cobra, a única forma de se curar é extraindo todo o veneno?
- O problema é quando o veneno já entrou na corrente sangüínea e tá no caule da flor, na raiz, na terra...
- Nesse caso a extração vai doer um pouco mais... mas tem que ser feita.
- De dor eu já cansei, já engavetei isso tudo... por favor, não vamos mais falar sobre isso.
- Mas...
- Me beija agora, sem mais conversa. Me beija, por favor.
- Mas, Alice... eu não posso ficar com você assim, você ficou muito abalada com alguma coisa que não eu não sei bem o que é... eu... eu consigo ver isso muito claramente... pare!
- Se você tem tanto apreço, carinho, ou seja lá o que for por mim quanto diz, faça o que eu estou dizendo: me beije agora!
- Não, eu não vou fazer isso! Pare!
- Se você não ficar comigo agora, não quero te ver mais.
- Se é assim, eu tou indo então.
- Como você pode não me querer? Logo você que me olha como uma raposa olha pra uma galinha gorda, logo você que me diz tantas coisas, que quer tanto estar comigo. Eu estou aqui, na sua frente, sem vergonha de nada, com a blusa na mão... você não pode me recusar desse jeito!
- Prefiro você vestida, com os olhos pretos de maquiagem e sendo sincera comigo e com você como sempre foi.

- Você não entende, não me entende, eu não quero mais falar! tou cansada de falar e não dizer nada porque a verdade é que estou fechada, envenenada, meu coração foi paralisado e ninguém vinha se incomodando com isso até você aparecer aqui e me encher de perguntas! Você acha que é assim, chegar olhando, invadindo tudo, fuçando todos os detalhes como se você soubesse de fato algo sobre eles?
- Tá bom. É isso mesmo que você quer de mim, né?
-É.
- Então tá.
Ela tirou o sutiã de bolinhas vermelhas e se deitou na cama me olhando fixamente, como que me amarrando aos olhos acesos, já meio borrados das lágrimas e cigarros anteriores. Ela tinha olhos lindos, como eu nunca tinha visto, olhos de flor amarela, mas que era flor de dentes pontiagudos e eu já tinha sido atingido, mordido na carne, bem na jugular. A minha vontade era tirar a roupa dela com fúria e esquecer tudo que tinha visto e ouvido nos últimos cinco minutos como uma criança esquece o que fazia dentro da barriga da mãe antes de nascer. Queria abraçá-la e dizer que ela podia se abrir pra mim, que eu jamais ia machucá-la, que nem sequer uma pétala daqueles olhos verdes eu ia arrancar.
- O que você tá esperando?
Me aproximei dela, segurei bem forte os cabelos loiros e a beijei com força, dente no dente, sangue pulsando na cabeça. Por um instante, não pensei em nada, só senti meu corpo inteiro envolvido por uma onda de um calor frio, frio calor, calma nervosa, nervosa calma enquanto deitava ela na cama e a segurava junto ao meu corpo.
Então, desenrolei meus braços da cintura dela, dei uns passos pra trás, peguei minha carteira que estava ao lado da televisão e bati bruscamente a porta do quarto. Apertei a setinha do elevador pra subir, mas eu queria mesmo era descer, ir logo pro inferno que eu sabia que estava indo a partir daquele momento. Não foi preciso nem encostar a cabeça na porta pra ouvir o choro dela que eu sabia estar guardado há muito tempo feito lembrança de festa de 15 anos. O apito do elevador me convidou pra entrar e eu fui. Pra onde? Não faço a menor idéia.



2 comentários:

Unknown disse...

A moça, a flor o jardineiro o veneno, a dor...
o cara, o entreguismo o intenso e o desespero, parece que tudo dançou no teu texto com passos bem marcados e, ainda assim, voláteis.
Quanta vida e antítese nisso tudo.
Quanto perfume dessa flor...
Merece continuidade sabia? os personagens foram rápidos, mas, ainda assim, marcantes.
Fikou massa ^^

Laurinha disse...

mas arrasa muito essa menina, viu?!
gente, o que é isso?!



te amo, amada.
nem preciso dizer que chorei com a parte do veneno, né?! iiiiih!
=*