segunda-feira, 30 de junho de 2008

coincidência

No dia seguinte, ela olhava o teto com a enorme satisfação de quem atingiu vôos altos. Não reparou naquela pequena falha no canto da parede, nem nas teias finas onde aranhas preparavam habilidosamente suas presas para o abate final. Hoje não. Sentia a alma povoada de espíritos novos e estranhos e isso era coisa fresca, coisa de nunca. Sorriu borda de boca. Meu Deus, será que isso foi mais um daqueles meus sonhos absurdos? Impossível: desta vez, eu me lembro de tudo. Tudinho. Virou a cabeça pro lado, desgrudou os cílios num abrir de olhos em dégradé, as cores perdendo a sua substância vivente. Eu já devia imaginar, aliás, sempre soube que ia ser assim. Já virou quase uma convenção, um acordo pré-estabelecido que se for violado, fica até feio. Mas por que não me sinto bem diante de tamanha previsibilidade? Eu sabia, sabia que ia ser assim. Mudar o rumo da história não é assim tão fácil, não tem motivo pra surpresa. Nem pra tristeza que aparece de intrusa no redemoinho das coisas. Ah não, ela não vai achar lugar aqui não. Acho que é porque sempre gostei de correr risco e esse foi mais um deles. O que faz com que eu não tenha o menor motivo de arrependimento. E eu não tenho. Mas não conseguia esquecer. As mãos, o perfume, os olhos de alegria insone, o gosto bom ficado em meus olhos e boca, os pedacinhos de palavra que eu fingia não entender só pra chegar mais perto dos sussurros dele. Até rio das minhas próprias artimanhas. Toda mulher faz suas trelinhas de vez em quando, senão deixa de ser. E toda ela sabe botar o homem aonde quer, doido por um bocadinho da mulher que sabe amar como ela só. Eu devia estar feliz, afinal consegui o que queria, como sempre. Essa história de estar sempre querendo mais às vezes cansa. Preciso aprender a sentir as coisas além da pele, direto na carne, ou melhor, no osso e entender o que elas realmente são, senão estou condenada à insatisfação eterna por uma insaciabilidade idiota.

Que horas já são, meu Deus? Nem precisou repetir a pergunta. Dez horas. Eram seis quando ela acordou com gosto de despertar na boca, e viu ali, ao seu lado, fios voando no bailar do vento vindo na tomada. Fios não dos seus cabelos cor de bolo de chocolate; fios de outra raiz, outro terreno. Que ela (quase) desconhecia. As sobrancelhonas deitando-se por cima dos olhos de faísca ligeira, o nariz quina de estátua, o queixo cheio, viril; tudo ia se revestindo da verdade e da confusão das lembranças. Quanto mais embaralhada a lembrança chega à linha de frente dos pensamentos, mais ela significou alguma coisa lá por dentro da caixinha de memórias. Tossiu um sorriso de memória e puxou o fio do ventilador num impulso: pára de me encher, desgraça! Que ódio! Com uma sede de garganta quase colada do outro lado, procurou os chinelos para ir em busca de água e viu, preso na porta do banheiro, um papelzinho rasgado à mão, que ela pegou e abriu com um franzido aproximado de sobrancelhas:

Desci pra comprar café.

Café? A essa hora? Será que ele é acostumado a tomar café logo depois de acordar? Ou será simplesmente que ele estava com fome e não quis me acordar? Mas café não mata a fome de ninguém. Tudo bem que pode ser o café da manhã inteiro, mas por que ele não me esperou? Pensando bem, é até bom: pode ser que traga café na cama pra mim. Ótimo. Ou não. Talvez ele não seja tão perfeito como eu penso e seja só simplesmente igual aos outros, que descem pela escada feito fugitivos, como que fugindo não da polícia ou do marido traído, e, sim, da pior coisa na vida de um homem: explicação. Palavras emboladas fazendo um ninho de frases secas e tentativas em vão de qualquer coisa. O homem não foi feito pra isso. É sempre assim: eles fugindo, e eu correndo atrás. Não deles, mas das explicações que eles esquecem de me atirar ao sair. E até que sou boa nesse ponto, criativa. Ninguém é capaz de se fazer acreditar em si como eu em mim: todas as minhas mentiras tornam-se minhas verdades. Como? Assim: forjo um soro da verdade que pensa em tudo, imagina as desculpas mais plausíveis e crê naquilo até a morte. E é assim que vivo: brincando com a verdade e guardando a mentira junto com as bonecas velhas. É: pode ser que seja só vontade de tomar de café. Ah! Será que ele não esqueceu algo? Não existe melhor desculpa pra voltar à casa de alguém do que esquecer alguma coisa lá. Não, acho que não. Ele só veio com a roupa do corpo e as flores. Meu Deus, as flores. A essa altura, já devem estar murchas. Que coincidência.

Um comentário:

Fellipe Fernandes X disse...

friend, gostei. achei incrivel a borda da boca e as flores murchas. bom demais te ler.
bjaum