quarta-feira, 25 de junho de 2008

Parte I

- Tudo o que eu sempre soube foi fugir. De meu pai, da venda, de você. Desde que eu era menina e nem podia pensar em tu. Mas pensava. Pensava justamente porque era uma fuga do que meu pai tinha planejado pra mim. Eu sei que não devia fazer isso e que vou me arrepender depois, mas foi só isso que eu aprendi na vida. Ir embora no meio da noite como uma criminosa que, no fim das contas, acabo sendo. Vou pra longe, outros altares.
- Ah, não vai não. Eu amo você e o seu lugar é aqui: no meu barco, no balanço da maré estando ela mansa ou braba. Do grão dessa areia fina até aquela linha que divide o lado de lá, somos nós dois, é tudo meu e teu. Tu já esquecesse que aceitasse quando eu te ofereci isso tudinho? Deixa de doidice que eu boto esse mundo de cabeça pra baixo e cavo um buraco tão fundo que nem Deus nem o diabo acham a gente. Fico na tua frente, você se abaixa, ninguém vê nem nunca mais sabe de nós. Só o Zé Peixe, aquele ali é homem bom, mais fiel que ele não tem. Bota aquele teu vestido branco e vem comigo que eu faço do mar a única testemunha da união da gente. Por que tu tá chorando, Nina?
- Porque eu tou com medo. A gente sempre tem medo do que não conhece. Uma vez, minha mãe me contou que quando eu era criança, eu tinha muita dificuldade de ler e escrever. Quando ela me colocou na escola, eu não queria ir, esperneava, chegava em casa todo dia chorando e dizia que não entendia as letras. Nunca fui boa com essa história de palavra. Em compensação, com sete meses eu já batia as perninhas querendo andar. Hoje em dia, eu cresci e já não ando mais: corro. Você teve que apressar o passo pra chegar até mim. Certeza de nunca parar, sempre mexendo as pernas. Essa é a única certeza que eu tenho na vida...
- E a única que eu tenho é você. Eu te amo!
- Deixa de coisa, nêgo, você sabe que eu também te amo e é justamente por isso que eu não posso te trair desse jeito. Me deixar pra trás pra ficar contigo é te trair porque não vou ser eu do teu lado. Vai ser outra e aí você também vai estar me traindo. Te amo demais pra ficar contigo pela metade. Se eu entrar nesse teu barco, no primeiro porto em que a gente parar, eu vou querer correr e tu vai ter que ir atrás de mim. Feito gato e rato ao invés de vela e vento. Você acha que isso tá direito?
- Eu prefiro ter uma linha da tua mão que seja do que não ter nada.
- Indo embora sozinha, tu vai me ter pra sempre. Toda. Indo contigo, nós dois vamos acabar nos partindo em pedaços e um com raiva do outro. Não vai funcionar! Vai, prepara teu barco e vai embora amanhã cedo como o combinado. Vai que eu vou pro outro lado, o meu lado. Vai.
- Amanhã, às 5h30, eu vou estar te esperando lá no cais. Foi por isso que eu sempre fiz questão de você saber exatamente de onde a gente ia partir e saber a hora também. Porque eu sabia que isso ia acontecer. Tenho tanta certeza de que vou ver teu colar de São Jorge e teu esmalte vermelho cruzando a linha entre o mar e o cais quanto eu tive de que me apaixonei por tu naquele dia do balanço: sem fim e sem volta. E eu não te culpo por ter medo, coragem sem medo não existe e vice-versa. Tou te esperando e sempre vou estar. Tu sabe disso, preta.
- Não, Chico, eu não posso fazer isso. Eu não vou contigo!
- Shh, não fala mais nada. Vai dormir e descansar porque amanhã a viagem vai ser longa. Tchau, até amanhã, meu amor.
- Chico, pare de agir como se nada tivesse acontecendo! Você tem noção do que eu tou lhe dizendo?
- Eu tou entendendo tudo, mas não tou com medo. Sabe por quê? Porque o amor da gente é cria de Iansã, rainha do vento, e foi ela quem que te derrubou do balanço em cima de mim com o mesmo vento que levantou tua saia tantas outras vezes, me botando doido de ciúme dos outros meninos. Foi o mesmo vento que carregou a areia que eu guardei naquele vidrinho pra tu. O mesmo que vai levar a gente pra onde a gente quiser. O mesmo que tá empurrando teus cabelos pra minha frente e vai te trazer amanhã. Eu sei que vai.
- Chico...
- Vai pra casa, minha flor, e vem amanhã correndo como tu sempre faz. Vem.

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